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COLUNA DE AQUILES RIQUE REIS - integrante do MPB 4 - março de 2008


ERA UMA VEZ... O menino André e os pianos De Cauda e De Armário. Estes dois, no final de uma tarde qualquer, descriam o futuro. “Há quanto tempo não surge um jovem disposto a sentar-se à sua frente e tocá-lo, meu velho?", disse De Armário. E continuou a implicar: “Aliás, do marfim que cobria suas teclas restou apenas a madeira carcomida. Você não tem vergonha, não?” “Tenho!” Resumiu De Cauda. E prosseguiu: “Mas o pior é que não vejo jeito de isso se modificar. A garotada parece que só quer saber desses tecladinhos mixurucas que eles ligam num computador portátil e ficam ali procurando o som que só nós temos.” “Calma, meu velho! Os moços têm lá suas razões”, argumentou De Armário. E seguiu: “Pra piorar, a gente ainda tem de ter um camarada pra afinar a gente...” “É, a concorrência está acabando com a gente, amigo velho. Mas quer saber? Nunca faltarão mãos experientes para nos fazer soar... Acho. Nós daqui nunca sairemos. Quando eles quiserem, basta retirarem o feltro que nos cobre e tocar como nunca imaginaram ser possível. ”Enquanto isso, filho de músico, o menino crescia ouvindo música, entre acordes e melodias de todo gênero. E logo aos 11 anos o menino apaixonou-se pelo piano. Fez dele seu brinquedo favorito. O pai, violonista virtuoso, conhecido no meio musical por sua capacidade de tirar os melhores sons de seu violão, tratou de dar ao menino todas as condições para que ele pudesse desenvolver as habilidades que já despontavam nítidas. Num belo dia, o menino já é adulto e toca seu piano. Frente às teclas, seu rosto adquire o brilho que anuncia: aquele é um moço feliz. E o homem se fez pianista profissional. Estuda e cria músicas. Num outro cair de tarde de um dia qualquer do ano de 1986, lá estavam os dois pianos dizendo-se ainda mais desiludidos com o futuro. Foi quando ouviram as notas que vinham de um piano igual a eles. Sentiram um calafrio percorrer-lhes as teclas. Pela leveza do som, logo perceberam que não eram dedos qualquer. “Dedos jovens!” Exclamou De Cauda. Lágrimas a escorrer-lhe tecla abaixo, De Armário sussurrou: “Que Deus ilumine as mãos deste que me trouxe de volta à vida.” André Marques, filho de Natan Marques, lançou Solo (independente), seu primeiro CD, no qual estão presente, tão-somente, o seu piano e algumas de suas composições. Comentando a primeira faixa, “Eterno”, André revela que ela é “um louvor a Deus que tem me abençoado muito nesta vida”. Permito-me discordar. Em todas as outras 11 faixas do álbum, André Marques toca como se o fizesse movido pelo louvor e pelo amor ao Deus que o impulsiona, e a seus dedos, rumo à beleza que só pode sair das teclas de um piano. Uma audição de Solo nos coloca diante de um músico que desconhece limitações. Suas mãos são ágeis o suficiente para mergulhar no fundo da música e de lá sair com as notas escorrendo por entre os dedos. E elas vêm com tal cara de felicidade, que não há como lhes negar tamanha alegria pelo futuro que chega quando menos esperam. André é suave e também é enérgico, com perfeita percepção de nuances. E suas composições estão ali para demonstrar que o compositor nada fica a dever ao pianista que as traz à luz. Nada resume André Marques. Ele é inteiro, prolongamento do piano, sensibilidade evoluída em estudos e em práticas no fazer música com o grupo de Hermeto Paschoal e com o Trio Curupira. Apenas “Acontece” (Cartola), “Ilusão À Toa” (Johnny Alf) e “A Feira” (Natan Marques) não são de autoria de André. Mas é como se fossem. Ele se apossa das canções que toca e as recria à sua semelhança e inspiração. Improvisador de extremo bom-gosto, inspirado criador de melodias, André Marques dá conta de a cada música transportá-la para seu piano e montar uma nova cena musical.Enquanto André toca, De Cauda e De Armário emocionam-se, pois só eles conseguem ter a dimensão exata do que vem das mãos deste músico exuberante. Apenas a eles é dado o sabor de sentir as lágrimas percorrendo suas teclas – as entranhas do piano.